Para não permitir avanços sociais, o poder econômico estará sempre disposto a quebrar o pacto democrático
Muito se vai dizer hoje e nos dias que seguem sobre os 35 anos da Constituição Federal, sobretudo, no aspecto de lhe prestar homenagens, como forma de reforçar a importância da defesa da ordem democrática.
A defesa da ordem democrática, quando se tem por paralelo o fascismo e os seus agentes, é justa e necessária. Ocorre que a vida e os fenômenos jurídicos e políticos não podem ser circunscritos a uma dicotomia focada nos extremos e, menos ainda, naquelas que situam na superfície ou, mais propriamente, no plano da aparência.
Então, sem afastar a pertinência de expressar o quanto a Constituição de 1988 foi importante no processo de redemocratização do país e de reconhecer o seu papel na obstrução de arroubos autoritários, é preciso reconhecer que muito da efetividade da Constituição nestes aspectos, está fincada em um outro pacto: o pacto antissocial e burguês que anima a classe dominante e seus interesses.
A inefetividade dos direitos sociais constitucionais é o que, concretamente, concebe a aliança entre os poderes político e econômico. A defesa da democracia, que envolveria o interesse difuso, é apenas a aparência, a tal ponto que é correto dizer que, para não permitir avanços sociais, o poder econômico estará sempre disposto a quebrar o pacto democrático.
Aliás, foi precisamente isto o que ocorreu na denominada “reforma” trabalhista: uma explícita ruptura democrática, para levar adiante um projeto econômico de rebaixamento dos direitos sociais.
Embora a Constituição de 1988, que é resultado da luta política dos trabalhadores contra o regime ditatorial e o rebaixamento econômico e jurídico dos quais foi vítima nos anos 60 e 70, tenha alçado os direitos trabalhistas ao patamar de direitos fundamentais e tenha, também, estabelecido seu compromisso em torno da construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, visando “garantir o desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; além de ter estabelecido como fundamento da República “a dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, passando pela “função social da propriedade”, determinada pelo “primado do trabalho”; e subordinado a ordem econômica à “valorização do trabalho”, de modo a “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, não aboliu, por completo, o modelo de sociedade capitalista.
Neste modelo, o poder econômico acaba estruturando e subordinando as condutas humanas e, por consequência, as suas instituições e seus compromissos. Assim, têm prevalecido compreensões normativas, notadamente, relativas aos direitos sociais que correm ao longo da Constituição.
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É, assim, por exemplo, que até hoje não se efetivou a “garantia de emprego, protegida contra a dispensa arbitrária” (inciso I, do art. 7º) e, também, em total afronta ao princípio da progressividade consignado de forma expressa no “caput” do art. 7º, se legitimaram as diversas formas de precarização do trabalho, como a terceirização, o trabalho intermitente e o trabalho doméstico, ou os modos de exploração de trabalho sem sequer o reconhecimento do vínculo de emprego, como no caso dos entregadores por aplicativos.
O caso mais emblemático, no entanto, é o do direito de greve.
A Constituição Federal de 1988 é resultado de greves e mobilizações sociais. Não à toa, é o primeiro documento que trata movimentos sociais e greves como direitos. E não só isso, os situa como direitos fundamentais. A greve é garantida pela Constituição Federal de forma ampliada, em seu artigo 9º:
“Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.” – grifou-se
Não poderia haver dúvida, portanto, que compete aos trabalhadores e trabalhadoras decidirem sobre a oportunidade da greve e sobre os interesses que devam por meio da greve defender.
No entanto, quando se expressa uma análise jurídica sobre a greve o que prevalece é o juízo moral e a percepção pessoal sobre o movimento. O direito de greve desaparece, entrando em seu lugar outros dispositivos legais, descolados, inclusive, da própria coesão constitucional, cuja base, vale repetir, é a prevalência dos interesses coletivos e a efetividade dos direitos sociais.
Verdade que a Constituição estabeleceu que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (§ 1º.) e que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”.
Parece óbvio, no entanto, que essas especificações atribuídas à lei não poderiam ser postas em um plano de maior relevância que o próprio exercício da greve. Em outras palavras, as delimitações legais, para atender necessidades inadiáveis e para coibir abusos, não podem ser vistas com um alcance tal que inviabilize o exercício do direito de greve.
Não bastasse a destruição da imperatividade normativa da Constituição, ainda se sobrepôs a ela, logo no ano seguinte, ou seja, em 1989, uma lei infraconstitucional, a Lei n. 7.783/89, que, inclusive, foi antecedida de uma Medida Provisória, para que não conferisse qualquer oportunidade temporal à efetividade do art. 9º da Constituição.
A Lei n. 7.783/89 é, nitidamente, uma lei com o propósito de diminuir o alcance do direito de greve inscrito na Constituição. Uma autêntica inversão da pirâmide Kelseniana, com relação à qual os mais ardorosos positivistas pouco se importam. Mais uma vez, o que interessa, como dito inicialmente, é manter vigente o pacto em torno da “ordem jurídica, política e democrática”, com base na inefetividade dos direitos sociais.
Para pôr à prova esta assertiva, basta colocar um democrata diante de uma greve. Será possível perceber o quanto o discurso da democracia não resiste à dinâmica emancipatória, transgressora e transformadora de uma greve e, assim, logo transpassa ao plano do conservadorismo clássico, mesmo retóricas discursivas do “bem comum”, etc, mas que não conseguem disfarçar a desconsideração dos grevistas como cidadãos e cidadãs.
No próprio campo jurídico trabalhista, de forma mais específica, este pacto é levado a extremos, pois as interpretações dadas à Lei n. 7.783/89 impõem limites à greve que nem mesmo a lei vislumbrou realizar.
Do ponto de vista de um alinhamento histórico, é como se passasse uma borracha na Constituição Federal, e o antecedente da Lei n. 7.783/89 fosse a Lei de Greve de 1964, a Lei n. 4.330.
O curioso é que mesmo dedicando-se a traçar um paralelo entre as duas leis, para construir argumentos em torno da identificação de um processo evolutivo, acabam-se concebendo sentidos para a lei de 1989 ainda piores, para o exercício do direito de greve, que os expressos na lei de 1964.
Tome-se como exemplo o direito ao recebimento de salário durante a greve que é expresso na lei de 1964, em dadas condições, mesmo tendo sido assumida a greve como suspensão do contrato de trabalho. Na lei de 1989 não se tem autorização expressa para o desconto de salários. Então, na perspectiva de atração da lei do regime ditatorial, o intérprete estaria autorizado a fazê-lo, sobretudo, passando por cima da Constitui
O mesmo se pode dizer, com utilização da técnica hermenêutica da visualização a contrario sensu, com relação à greve denominada política. A Lei n. 7.783/89, ao contrário do que fazia a Lei n. 4.330/64, não especifica os interesses que por meio da greve podem ser defendidos.
Então, vista a regulação em perspectiva histórica, o que se tem é um silêncio eloquente, ou uma afirmação em outro sentido, até porque o art. 9º da Constituição deixa evidenciado que são os trabalhadores e trabalhadores que decidem isto, e não o legislador e, menos ainda, o intérprete da lei.
Até porque toda greve é, antes de tudo, um ato político, tanto que sem a efetividade do direito de greve, todos os demais direitos sociais perdem efetividade, na medida em que não podem ser defendidos de maneira adequada frente ao poder econômico.
Já passou da hora, portanto, de aplicarmos a Constituição Federal. A começar, por exemplo, com a garantia de emprego contra dispensa arbitrária, a limitação e redução da jornada e trabalho, a proibição de horas extras prestadas de forma ordinária, o enfrentamento concreto das figuras de assédio e de discriminação racial e de gênero nas relações de trabalho, o pleno exercício do direito constitucional de greve e, também, pela revogação do banco de horas, da lei de recuperação judicial, da terceirização, da “reforma” trabalhista, da “reforma” previdenciária e do teto de gastos públicos, além da efetivação de direitos trabalhistas e sociais integrais para as trabalhadoras domésticas, as vendedoras ambulantes e os entregadores e motoristas por aplicativos, dentre outros(as) precarizados(as).
Com o aprofundamento do sofrimento, o aumento do desemprego, do desalento e das doenças crônicas decorrentes de desnutrição e de estilos de vida, determinados pela necessidade econômica, incompatíveis com a condição humana, a explicitação cada vez maior das falácias neoliberais, das ameaças concretas ao ecossistema e à vida humana, o renascer da consciência de classe, o despertar do movimento estudantil e das mobilizações dos trabalhadores e trabalhadoras e a libertação das prisões das chantagens estabelecidas em dicotomias artificial e parcialmente construídas, a oportunidade histórica para este avanço – e até mesmo para saltos ainda mais ambiciosos – está dada.
Isto, por certo, pode ser mais uma torcida do que uma constatação científica.
De todo modo, não custa nada esperançar.
Quem sabe, assim, no dia 05 de outubro de 2024, estejamos, pelo menos, comemorando o ano 01 da Constituição Federal de 1988.
*Jorge Luiz Souto Maior é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Geisa Marques
Fonte: Brasil de Fato