Para garantir um investimento conjunto na relação de trabalho e na negociação coletiva, é fundamental que as partes interessadas criem um espaço para fazerem isso em conjunto.
Clemente Ganz Lúcio
Anegociação coletiva com sua institucionalidade, instrumentos, cultura e sindicatos, sujeitos coletivos que a promovem, constituem um patrimônio político das sociedades. Os meios e os processos de diálogo social escolhidos e implementados para tratar dos conflitos laborais, que são inerentes às relações sociais, estruturam o sistema de relações de trabalho. Este sistema compõe o mosaico da complexidade institucional da política, da vida pública, da qualidade da democracia e do padrão de desenvolvimento econômico e socioambiental.
O Brasil tem o desafio, que pode ser agora superado, de promover um padrão de crescimento econômico que responda aos desafios das desigualdades e da crise ambiental. Um virtuoso incremento da produtividade do trabalho e da atividade produtiva, sustentado pela inovação e tecnologia, pela educação e formação profissional, pelo investimento e crédito, com a geração de empregos de qualidade e aumento da renda do trabalho, será resultado de uma capacidade de transformação produtiva em todos os setores que busca estar na fronteira do conhecimento e do bem-estar coletivo. O processo de diálogo social abre portas e janelas capazes de possibilitar visão de futuro, definir missões e pactuar compromissos de implementação.
Enfrentar e superar esses desafios exigem um olhar de 30 anos à frente para definir missões mobilizadoras com objetivos e metas, desenhar os caminhos a serem trilhados e, fundamentalmente, começar a fazer já, aqui e agora.
Diante dos conflitos sociais, levantamos muros, fazemos guerras e consideramos o outro como inimigo a ser destruído. Depois da destruição, o que e como construir? Depois da derrota, como conviver? Os muros que levantamos nos impedem de olhar com o outro para vermos, juntos, a complexidade dos fenômenos sociais.
O diálogo social é uma ferramenta política poderosa para colocar portas e janelas onde há muros.
O mundo do trabalho em transformação carrega uma agenda de tarefas complexas que são parte dos desafios acima enunciados. Fortalecer a negociação coletiva é investir em instrumentos e processos que geram a capacidade política e a arquitetura institucional para tratar das questões afetas diretamente ao mundo do trabalho no espaço do sistema produtivo. O fortalecimento da cultura da negociação coletiva favorece o uso do diálogo social como ferramenta para tratar dos conflitos e dos desafios em outros âmbitos.
As mudanças tecnológicas e digitais ocorrem em velocidade e extensão que exigem resposta cotidiana, permanente procura de soluções por parte dos interessados, a apresentação de pautas e demandas, a elaboração de propostas e a busca de soluções. No cotidiano do mundo do trabalho, a negociação coletiva é a melhor forma de promover essas diretrizes.
Vivemos um tempo no qual tudo se desmancha no ar sem deixar de ser sólido. Desafiados a conhecer os novos contextos econômicos da vida social, nos deparamos com a modernidade do século XXI e com situações, práticas e condições do século XIX. As mudanças disruptivas do avanço tecnológico e da digitalização, entre outras dimensões, que caracterizam a modernidade do século XXI precisam carregar a transformação disruptiva da vida e condições de trabalho do século XIX presentes e reproduzidas entre nós.
Considerando as relações de trabalho, os processos de transformação, a complexidade do sistema produtivo, a extensão do território nacional, a diversidade setorial e de tamanho de empresas, há que fortalecer processos e sistemas de negociação coletiva capazes de serem instrumento flexível, seguro, permanente, assertivo, correto e inovador para estabelecer as regras para situações e problemas inéditos e com complexidade diversa.
Nesse sentido, cabe oferecer ao sistema de negociação coletiva a possibilidade de estruturar âmbitos negociais que atendam às demandas das partes interessadas nos diversos contextos situacionais. Os âmbitos podem por empresa, local, regional, setorial, nacional, cadeia produtiva, temático, entre outros e devem ser criados pelas partes.
A relação entre os diferentes âmbitos de negociação requer articulação e coordenação entre os processos negociais e seus instrumentos coletivos, acordos e convenções. Processos negociais mais abrangentes (p.ex. setorial nacional, regional) criam regras mais homogeneizadoras, evitam competitividade espúria entre empresas, têm bons efeitos no combate às desigualdades salariais e de condições de trabalho. Processos negociais mais específicos, p.ex. por empresa, permitem maior flexibilidade para a adequação aos contextos produtivos específicos. Articular e coordenar significa estabelecer atribuições aos âmbitos, delegar, permitir. Por outro lado, acordos e convenções coletivas podem ser complementados por instrumentos como Protocolos, Compromissos, Termos, etc., meios que permitem celebrar pactos de caráter distintos.
Essa coordenação da negociação coletiva no espaço das relações de trabalho deve estar combinada com as políticas públicas de emprego, trabalho e renda, bem como com as leis e normas da legislação trabalhista.
O sistema de relação de trabalho brasileiro tem uma regra de ouro, a garantia de cobertura universal dos abrangidos pelo âmbito de negociação. Sindicalizados e não sindicalizados são beneficiados e devem cumprir as regras estabelecidas. Temos, com a combinação das regras acima, um ótimo meio de negociar a distribuição do produto econômico do trabalho coletivo segundo as características de cada contexto e situação.
Os efeitos das regras pactuadas nas negociações coletivas sobre e a realidade revelam impactos relevantes sobre os empregos, os salários, as condições de trabalho, saúde e segurança, bem como sobre a produtividade e o ambiente de trabalho nos espaços das empresas.
Para que o sistema de relações de trabalho seja virtuoso, os sujeitos coletivos que o promovem devem ser muito representativos, terem ampla base de representação, serem capazes de mobilizar pautas e propostas consistentes, ter legitimidade delegada pela base para celebrar os compromissos expressos em acordos e convenções com segurança jurídica para as partes interessadas.
Para que essas diretrizes deem vida ao sistema de relações de trabalho, é fundamental que as organizações sindicais estejam sintonizadas com suas próprias mudanças, com boas práticas organizativas e de solução de conflitos. No exercício da autonomia das partes interessadas entre si e em relação ao Estado, promover a autorregulação sindical é a forma de delegar às partes a responsabilidade de tratar do seu sistema sindical e dele cuidar.
Para garantir um investimento conjunto na relação de trabalho e na negociação coletiva, é fundamental que as partes interessadas criem um espaço para fazerem isso em conjunto, o que poderia ser realizado por meio de conselho de alto nível criado para a promoção da negociação coletiva.
O tempo presente coloca oportunidades para abrirmos portas e janelas nos muros criados por nós. As chaves estão em nossas mãos, mas pouco valem se nos muros não houver portas.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, membro do CDESS – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República, membro do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil, consultor e ex-diretor técnico do DIEESE (2004/2020).
Fonte: Democracia e Mundo do Trabalho