A regulamentação e redução da jornada de trabalho criará segurança jurídica, facilitando a maior criação de postos de trabalho de boa qualidade e com maior rendimento.

Cássio da Silva Calvete 

 

Nos últimos quatro anos, a ofensiva bolsonarista deu continuidade à tendência de precarização das condições de trabalho, desregulamentação da jornada de trabalho e ataque ao tempo livre do trabalhador, que se iniciou nos anos 1990 e teve seu ápice na contrarreforma trabalhista de 2017. 

Uma das consequências foi a despadronização do tempo de trabalho, que é o fim da grande concentração de trabalhadores trabalhando numa jornada de 44 horas semanais, predominante  nos anos 1980 e 1990.  Com a despadronização, a jornada de trabalho, não há mais uma polarização na média, pois uma parte dos trabalhadores têm jornadas muito extensas, acima de 48 horas, e outros, jornadas muito curtas, de até 14 horas. As jornadas muito extensas são desaconselháveis, por acarretarem problemas de saúde e problemas sociais. Já as jornadas muito curtas, em geral, não são suficientes para prover o suficiente para subsistência do trabalhador.

Partimos do pressuposto que a redução e a regulamentação do tempo de trabalho são essenciais para enfrentar os atuais problemas sociais brasileiros, em um contexto de ausência de oportunidades para todos trabalharem e muitos postos de trabalho precários. É fundamental para construir uma sociedade socialmente mais inclusiva, justa e homogênea que haja ocupações para todos, com boa remuneração e boas condições de trabalho. A padronização da jornada de trabalho é resultado de conquistas sociais, que ficaram gravadas em leis e nas tradições. Uma jornada de 8 horas diárias e 44 horas semanais; limite de até duas horas extraordinárias; garantia de descansos e refeição intrajornada; descanso semanal remunerado; período mínimo entre uma jornada e outra; pagamento das horas in itinere, jornadas noturnas menores. Com essas regras, ficava garantido um padrão de civilidade à jornada de trabalho.

Apesar do início da desregulamentação da jornada de trabalho ocorrer já nos anos 1990, ou seja, logo após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, ela se intensificou na contrarreforma trabalhista de 2017 e continuou com a inação do Governo Bolsonaro em não regulamentar os novos arranjos de relações de trabalho que surgiram na esteira dos avanços tecnológicos. Como caso paradigmático, tem-se os trabalhadores de plataformas digitais, mas podemos citar todos os trabalhadores que são geridos por algoritmos e inteligência artificial.

A partir de 2010 e, principalmente após a contrarreforma de 2017, vemos surgir e crescer várias formas de relações de trabalho novas que desconsideram as antigas regulações e que visam aumentar, intensificar e flexibilizar a jornada de trabalho. E, em muitos casos, desfazem totalmente as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho, local de trabalho e local de não trabalho. 

Muitos são os casos de “novos” vínculos que permitem que a distribuição, a intensidade e a extensão da jornada sejam determinados de forma discricionária pelo empregador, sob o falso manto da liberdade de escolha. Como exemplos, temos os casos dos trabalhadores em aplicativos, sejam eles on demand ou crowdwork, os trabalhos intermitentes, terceirização total, teletrabalho e o esdrúxulo autônomo exclusivo. 

A sociedade não pode se conformar com a precarização e a informalidade como um mal menor ao desemprego, porque essa “saída” cria um círculo vicioso que só leva a mais informalidade e precariedade no mercado de trabalho. É a saída do desemprego por baixo, pelo rebaixamento das condições econômicas e sociais que nos levará ao círculo vicioso, e paradoxal, de continuamente ter que piorar as condições de trabalho para que elas não fiquem piores ainda. É aceitar o péssimo, para que não fique horrível. Mas esse caminho, no entanto, só vai agravando a situação.

A contrarreforma de 2017, justificada pela falácia do “Custo Brasil” e da dita modernização das relações trabalhistas, foi imposta após o golpe na Presidenta Dilma e prometia mais empregos e melhores salários. No entanto, após seis anos de sua implantação, o que vemos é mais informalidade, mais precariedade e menores salários.

O problema parece ser um processo sem fim. Apesar do fracasso na criação de empregos formais e dos aspectos negativos no mercado de trabalho como um todo, os defensores da contrarreforma, ao invés de reconhecerem seu fracasso, propõem aprofundar a flexibilização, indicando que foi sua “modéstia” que fez com que ela não surtisse o resultado esperado. 

Na verdade, os detentores do capital sempre aproveitam as novas possibilidades de organização do processo de produção, colocadas pelas inovações tecnológicas, e criam “novos” vínculos, “novas” regras e “novos” fetiches – para aprofundar a exploração do trabalho e a extração de mais-valia. 

Não podemos e não devemos cair no determinismo tecnológico. A tecnologia não determina nada e não impõe nada. A inteligência artificial e os algoritmos não pensam, não definem e não ditam regras. O ser humano é o responsável pela forma de organização do processo de produção, pela sequência adotada nos algoritmos, pela forma de regulação das relações de trabalho, pela forma de organização da sociedade e, também, o mais importante de todos, pelos valores que serão cultivados e apreciados. Novamente, mais uma vez e sempre, é a luta de classes que está colocada. 

 Não se trata de negar os ganhos e as vantagens que o avanço tecnológico traz para os consumidores e para a sociedade. No entanto, é preciso ter consciência de que a não regulamentação ou a forma de regulamentação que será adotada faz parte de um conjunto de escolhas políticas e não técnicas. Assim, a forma como a utilização da tecnologia será regulamentada resultará num tipo de distribuição dos ganhos e das perdas da mesma. Esses ganhos poderão ser apropriados majoritariamente pela sociedade, pelos trabalhadores, pelos consumidores ou pelas grandes empresas monopolistas. 

O resultado final será definido através da luta de classes, portanto uma construção política da distribuição dos ganhos e das perdas. Só uma construção social negociada e uma regulamentação legal podem distribuir melhor os ganhos e minimizar as perdas. A não regulamentação deixa a utilização da tecnologia ocorrer ao bel-prazer das empresas que a implementarem, de forma discricionária, visando unicamente satisfazer os seus interesses.        

Vivenciamos um momento econômico, social e político oportuno para reduzir e regular a jornada de trabalho. A economia brasileira neste ano de 2023 experimentará uma variação positiva no PIB, a inflação está controlada e as promessas de geração de postos de trabalho e melhor remuneração com a contrarreforma trabalhista não se verificaram. Na questão social, depois de um começo que prometia muito, os novos postos de trabalho em plataformas digitais e as relações gerenciadas por algoritmos mostraram o seu lado perverso. 

No Brasil, os postos de trabalho em plataformas digitais são os que mais crescem e o fazem à revelia de qualquer regulamentação, impondo péssimas condições de trabalho com impactos negativos não só para os trabalhadores, mas para a sua família e círculo de amizades e para a sociedade. 

No aspecto político, o fracasso do Golpe liberal e a ascensão da extrema-direita, pioraram sobremaneira a economia brasileira e, particularmente, o mercado de trabalho, abrindo espaço para o retorno de um projeto mais humano e inclusivo que coloca a melhoria do mercado de trabalho como um dos objetivos. 

A regulamentação e redução da jornada de trabalho e das relações trabalhistas criará segurança jurídica, facilitando a maior criação de postos de trabalho de boa qualidade e com maior rendimento, jogando água no moinho de um ciclo virtuoso com aumento da renda, aumento de consumo e aumento de investimento. No entanto, mais importante que os benefícios econômicos, é construir relações de trabalho mais saudáveis e humanizadas que irão melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, das suas famílias e da sociedade.

 

Referências

ADAMS-PRASSL, J. ABRAHA, H. KELLY-LYTH, A. SILBERMAN, M. RAKSHITA, S. ‘Regulating Algorithmic Management: A Blueprint’. 14 European Labour Law Journal (forthcoming), 2023.

CENTRO DE ESTUDOS SINDICAIS (CESIT). Contribuição Crítica à Reforma Trabalhista. Campinas: Unicamp, 2017.

DAL ROSSO, S. CARDOSO, A.C.M, CALVETE, C. KREIN, D. O futuro é a Redução da Jornada de Trabalho. Porto alegre: Editora Cirkula, 2022.

 

Cássio da Silva Calvete é Professor associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).