Valdete Souto Severo

Fonte: Brasil de Fato

Data original da publicação: 01/03/2024

 

“Combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”.

 

Conceição Evaristo.

No último dia 28, praticamente todas as capitais do país fizeram atos em defesa da competência da Justiça do Trabalho. A razão imediata é o anúncio do julgamento do RE 1.446.336, em que o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre questão ligada a vínculo de trabalho com a UBER. Isso porque as discussões em torno desse tema são antecedidas por outras decisões, nas quais o STF refere que a Justiça do Trabalho não tem sequer competência para decidir sobre a existência de vínculo de emprego.

 

E note-se que a competência da Justiça do Trabalho, que está prevista no artigo 114 da Constituição, é para resolver todos os litígios que decorrem da relação de trabalho. Ou seja, mesmo o trabalhador autônomo deve sujeitar suas pretensões à Justiça do Trabalho.

 

Quando o STF, em decisões como aquela proferida na Reclamação Constitucional 59795, refere que a competência é da justiça estadual, opera-se um esvaziamento que, no limite, certamente compromete a existência dessa justiça especializada. Nessa decisão, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que uma decisão reconhecendo a existência de vínculo de emprego desrespeita entendimento precedente do STF, no sentido de que existem outros tipos de contratos. Essa afirmação, por si só, já seria digna de um texto, mais longo que esse.

 

Reconhecer a existência de vínculo de emprego em uma situação concreta não significa dizer que não existem outras formas de relação de trabalho. Significa, apenas, reconhecer as características daquela situação fática específica. É até difícil escrever sobre isso, porque parece óbvio demais para crer que tal tipo de raciocínio interpretativo parta do exame da legislação vigente. O pior é que a decisão vai além.

 

Após dizer que reconhecer o vínculo de emprego em um caso concreto equivale a desrespeitar a premissa de que existem outras formas de relação de trabalho, o ministro determinou a remessa do processo à justiça comum.

 

A decisão não é única, por isso ligou o sinal de alerta sobre um movimento que, na verdade, é bem antigo. Aquele que pretende a extinção da Justiça do Trabalho e que, inclusive, foi uma das razões de ações em defesa dessa instituição, feitas na primeira metade da década passada, e que resultaram na aprovação da Emenda Constitucional 45 em 2004.

 

No processo que agora está em pauta, o STF já tem maioria de votos no sentido de reconhecer repercussão geral à matéria. Isso significa que uma única decisão determinando a remessa do processo à justiça comum, por se tratar de uma relação de trabalho autônoma, pode implicar o completo esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho.

 

Em resumo, não está em jogo apenas a matéria de fundo: existência ou não de vínculo de emprego na relação entre motoristas e empresas que vendem serviços através de plataformas digitais.

 

Minha questão aqui, para além de tentar explicitar o que está realmente em questão na pauta do STF, é chamar a atenção para dois fatos. 1. O STF tem sido um ator decisivo na desconstrução do Direito do Trabalho e, por consequência, na precarização das condições de quem vive do trabalho. 2. O mundo do trabalho e suas instituições, aí incluída a própria Justiça do Trabalho, também têm sua responsabilidade nesse processo destrutivo.

 

Não compreender isso e seguir apenas lamentando o que representa a postura adotada pelo STF diante dos conflitos trabalhistas é claramente insuficiente para reverter o quadro atual.

 

Quanto ao primeiro fato, a série de decisões do STF sobre questões trabalhistas está profundamente demonstrada no livro do amigo Grijalbo, assim como em textos recentes de Souto Maior.

 

Basta ler para entender que, ao assumir o Direito do Trabalho como um direito fundamental constitucional, o STF, em lugar de posicionar-se pela sua efetividade, reforçando seu caráter de direito social, proferiu decisões que têm promovido precarização da proteção social de quem vive do trabalho.

 

E isso é grave, especialmente da perspectiva política, pois evidencia aliança com um projeto de Estado que é contrário à proposta constitucional. Lá, os direitos sociais, tal como o trabalhista, figuram como fundamento da República, de tal modo que até a ordem econômica deve sujeitar-se aos ditames da justiça social (art. 170). A relação de emprego é direito fundamental expresso (art. 7º, I).

 

Quando a corte, cuja função é a defesa da Constituição, assume uma postura refratária (para dizer o mínimo) à efetividade de direitos reconhecidos como fundamentais, põe em marcha um movimento mais devastador até do que aquele vivido na década de 1990.

 

O segundo fato é ainda mais complexo, mas está certamente imbricado. De todos os aspectos possíveis para a sua análise, opto em chamar atenção para o fato de que, exatamente por se tratar de um projeto de Estado, e não de governo, é importante compreender que ele não teria força, se dependesse apenas de decisões do STF.

 

O anúncio de que o governo enviará projeto de lei em que trata da figura do “trabalhador autônomo por plataforma” é sintomático. Revela a anuência de parte importante da mídia com essa forma precária de exploração do trabalho e a resistência do governo em posicionar-se em favor da Constituição e, portanto, do direito fundamental à relação de emprego.

 

Desde o início da gestão atual, o governo federal abriu espaço para discussões, com as e os trabalhadores desse tão importante setor da classe trabalhadora, sobre suas reais condições de trabalho. Se a notícia, curiosamente veiculada também no dia 28, se revelar verdadeira, será uma perda bem impressionante, não apenas de oportunidade de reconhecimento do vínculo de emprego para essas pessoas, mas sobretudo do controle do discurso sobre as condições de troca entre capital e trabalho.

 

A centralidade da escolha do tema, para a partir dele discutir competência material da Justiça do Trabalho, é o que deve nos alertar.

 

Afinal, trata-se da essência do Direito do Trabalho, pois o ataque é ao discurso de que a troca entre capital e trabalho, em uma sociedade de trabalho obrigatório, tem o contorno do que o Estado denomina vínculo de emprego.

 

A questão é que esse projeto não é do STF, nem dessa década. Passa pela aceitação da violência da terceirização, por entendimentos que condicionam a subordinação à comprovação de práticas punitivas sequer previstas na CLT; por alterações legislativas que permitem condenar trabalhadoras e trabalhadores pobres ao pagamento de custas e pela existência de juízes com disposição para aplicá-las. Passa pela banalização das horas extras, da despedida, do acúmulo de diferentes funções sem contrapartida salarial. Passa pela prática de extinguir execuções sem o pagamento dos créditos já reconhecidos e de estimular acordos, mesmo sabendo que implicam renúncia ou burla ao sistema de previdência social. Pela invenção da tal cláusula de quitação geral do contrato e por uma gestão empresarial por metas que nos adoecem e distanciam da finalidade do trabalho que aqui realizamos.

 

Enfim, passa também por uma linguagem que desqualifica o vínculo de emprego. Trata esse vínculo como contrato; empregador como tomador; empregado como empreendedor. Basta ler petições iniciais, defesas e decisões, para perceber com que insistência o civilismo suplanta a linguagem trabalhista, social e protetiva.

 

É urgente reconhecer essa realidade, porque a palavra tem força.

 

Quando, lá atrás, parte importante do sistema de justiça trabalhista abriu mão de brigar pela motivação da despedida; pelo reconhecimento do vínculo direto com tomadoras; pela inconstitucionalidade da justa causa; pela violência e ilicitude de um regime de 12 horas de trabalho, a partir de uma lógica do “mal menor”, o que estava ocorrendo era a pavimentação da estrada que nos conduziu ao momento atual.

 

Então, não se trata apenas do enquadramento jurídico de uma classe específica de pessoas. O que está em jogo é a possibilidade de viver do trabalho com um mínimo de decência, em uma sociedade na qual o trabalho é, como regra, a única fonte de subsistência, num Estado em que a Constituição faz claramente a opção de compromisso social com essa realidade e com a limitação de seus violentos efeitos. Por isso, não basta a crítica à postura que o STF vem adotando em relação ao Direito do Trabalho.

 

É preciso encarar a pergunta fundamental: qual Justiça do Trabalho defendemos? E qual a nossa implicação nisso?

 

Na Exposição de Motivos do Anteprojeto da Justiça do Trabalho, de 1936, há referência expressa à necessidade de um tribunal com ação rápida e eficaz, que “não pode ser neutro” diante das perturbações coletivas. Pois bem, nesse projeto de uma sociedade em que o Direito do Trabalho não exista, são exatamente as perturbações coletivas que são estimuladas. Afinal, não ter vínculo de emprego é perder a possibilidade de adoecer, de tirar férias, estudar, aposentar ou planejar a vida.

 

Não ter direitos trabalhistas, nem uma instituição forte que os garanta, tem direta relação com violência doméstica, acidentes no trânsito, adoecimento emocional, incapacidade de consumo, falta de engajamento na vida comunitária.

 

Mas – e esse é um ponto essencial – ter uma justiça que homologa qualquer tipo de acordo; que banaliza a despedida ou a prática de trabalho em horas extraordinárias; que veda o acesso à justiça tornando-a onerosa para quem é pobre; que aceita a terceirização; que extingue processo por prescrição intercorrente sem cobrar a dívida (tantos outros exemplos me vêm à cabeça) também causa esses mesmos efeitos sociais.

 

 São essas as perturbações coletivas que o Estado brasileiro resolveu enfrentar no século passado. São essas as perturbações que ainda precisamos enfrentar em 2024.

 

É essa a linguagem que temos a oportunidade histórica de recuperar.

 

A defesa da Justiça do Trabalho precisa, portanto, ser uma defesa por determinado tipo de sociedade e por uma certa atuação jurisdicional que honre a necessidade de proteção a quem vive do trabalho. É sobre insistir em viver e deixar que vivam as pessoas que trabalham. Deve, então, ser um movimento de compromisso com uma Justiça do Trabalho que não apenas resista, mas recupere e cumpra sua função histórica de efetivação dos direitos trabalhistas.