As crises que envolvem as democracias do Ocidente exigem revisar categorias analíticas e dogmáticas que se projetam tanto no político quanto no social, nos quais o âmbito laboral exibe cruamente um conflito de base entre o Capital e o Trabalho.

As crises que envolvem as democracias do Ocidente, também vistas em nosso subcontinente americano com as peculiaridades próprias de nosso passado colonial (que mantém resquícios evidentes no âmbito cultural), bem como nosso pertencimento à periferia mundial (traços que se replicam em todos os nosso países, ainda que não de maneira idêntica), exigem revisar categorias analíticas e dogmáticas que se projetam tanto no político quanto no social, nos quais o âmbito laboral exibe cruamente um conflito de base entre o Capital e o Trabalho.

No texto a seguir, algumas reflexões são propostas em torno desses eixos ligadas a uma historicidade que marca um contexto incontornável e os processos singulares atravessados pela Argentina, especialmente, após a recuperação da institucionalidade democrática, prestes a cumprir 40 anos.

I. Direitos humanos sociais e trabalhistas na Democracia

Os direitos humanos ganharam grande relevância após os terrorismos de Estado em nossa região, cuja coordenação genocida evidenciou-se na denominada “Operação Condor”, com participação determinante e incitação da classe empresarial. Impulsionados por ditaduras que não respondiam somente aos mandos militares, setores civis tinham seus interesses representados e, nas urnas, surgiram governos alimentados pelas mesmas usinas ideológicas.

Do ponto de vista social e trabalhista, após esse período histórico no subcontinente americano há especial preocupação em promover mecanismos de reparação e prevenção frente a tais desvios institucionais.  

Transcorridas várias décadas – na Argentina, quatro – de continuidade institucional, a democracia ainda não está totalmente permeada nas relações de trabalho individuais e coletivas.

Da mesma forma, a estrutura orgânica-funcional da Justiça possui caracterização endogâmica, elitista e autoritária que não responde ao tipo de papel institucional que seria sua missão, resultando em um desvio de sua missão específica em uma democracia social. A situação se agravou pela ação do poder judicial e do ministério público fiscal, que exibe ostensiva cumplicidade com o poder econômico e os meios de comunicação hegemônicos. Ocupam o lugar que nos anos 60 e 70 do século XX ostentava o “Partido Militar”, constituindo-se em um “Partido Judicial” para o cumprimento dos mesmos fins antidemocráticos e anti republicanos.

A resistência aos valores democráticos sustentada nesses espaços tão relevantes para o desenvolvimento do sistema de relações trabalhistas impõe reformulações teóricas a partir de novas estratégias para a defesa dos direitos inerentes à liberdade sindical. Essa é uma imposição frente aos embates que, de maneira crescente, se projetam sobre os princípios básicos do Direito do Trabalho, em um cenário que propõe sua desconstrução com formulações economicistas que atrasam mais de um século os níveis de proteção às pessoas que trabalham e às organizações associativas que as representam.

II. Uma velha e discutível concepção de liberdade sindical

Se falamos de sindicatos, não é possível restringir sua atuação, como categoria conceitual, ao coletivo conformado por trabalhadoras e trabalhadores, a partir de relações de emprego – vigentes ou não – e do “trabalho”. A liberdade de organização e defesa dos interesses dos trabalhadores, bem como a de outros coletivos que possam perseguir objetivos similares do tipo corporativo, não pode confundir-se com o sentido que possui a liberdade sindical com relação aos direitos reconhecidos às pessoas que trabalham nas condições anteriormente citadas.

A equiparação dos empregadores no reconhecimento da liberdade sindical implica uma distorção que procede de uma concepção “liberal”. Tal distorção não capta, em sua essência, um instituto que somente cobra real sentido direcionado e restringido à classe trabalhadora, que enfrenta ou pode encontrar limitações para associar-se, para estabelecer negociações coletivas e para exercer ações de autotutela. Limitações que, salvo exceções, não afetam os empregadores e que, em qualquer caso, poderiam ser superadas pelas normas que consagram direitos associativos civis não-trabalhistas.

As Convenções 87 e 98 (OIT) que se identificam, justamente, com a liberdade sindical nos planos individual e coletivo, devem ser contextualizadas conforme a época em que foram sancionadas (1948 e 1949). Destacavam o fim da Segunda Guerra Mundial e uma nova distribuição das hegemonias planetárias (Yalta, Bretton Woods, Guerra Fria); os processos de descolonização e de liberação nacional; a expansão do marxismo em suas diversas manifestações e do comunismo soviético em particular.

A reconstrução da Europa, os esforços para deter o avanço do comunismo e o papel atribuído ao sindicalismo nos países centrais consistem no gênesis do Estado de Bem-estar e na consagração de um plexo de direitos sociais que não tiveram percurso similar no Terceiro Mundo.

Com certa analogia ao ocorrido nos começos do Liberalismo, o Estado apresenta-se como o gerador dos maiores perigos para a liberdade sindical, instituindo dispositivos protetores e vedando toda a atuação no inerente a uma autonomia coletiva, com noção semelhante à “autonomia da vontade individual”.

Surgem então duas questões que devem ser consideradas. A primeira questão, de natureza lógica, é que os riscos maiores vêm da classe empresarial, com a qual o sindicalismo disputa poder no inseparável confronto Trabalho/Capital e no conflito conseguinte que subjaz às relações trabalhistas.  Devido a isso, as tutelas que requerem o exercício da liberdade sindical, unicamente podem ser entendidas e concebidas em favor da classe trabalhadora, sem equivalências formais dirigidas aos empregadores.  

A segunda questão diz respeito ao Estado moderno Social de Direito, que tem o papel fundamental de promover, proteger e ampliar os direitos próprios da liberdade sindical, ao que deve apresentar-se como um aliado indispensável da classe trabalhadora e não como seu natural inimigo, sem prejuízo das garantias que se prevejam para quando se contrapõe a essa tarefa. Assim,  corresponde diferenciar sua “intervenção” no campo das relações coletivas de trabalho, regulando mecanismos protetores que favoreçam a organização associativa, potencializando suas capacidades (de representação, de negociação e de conflito), com a “ingerência” na vida e ação sindical com um viés, justamente, contrário a esses propósitos.

III. Um eurocentrismo colonial 

A apelação a categorias eurocêntricas é muito comum na política, como ocorre com a dicotomia forçada de “esquerdas” e “direitas”, que acabam por não se corresponderem nem serem úteis para identificar os movimentos nacionais e populares do Terceiro Mundo, em particular dos países latinoamericanos, que têm uma historicidade com enormes diferenças em relação aos países centrais.

As correntes com anseios revolucionários das “esquerdas” europeias transformaram-se em sociais-democracias, para além dos limites que foram demonstrando desde fins do século XX e tiveram seu deslizamento ao “centro” cada vez mais à “direita”. Nesse movimento, mostraram fracassos estrondosos em termos de ruptura das múltiplas dependências com as hegemonias imperialistas dos Estados Unidos e seus sócios europeus. Também não foram aptas a captar os fenômenos políticos populares de consciência nacional, denominados, no sentido depreciativo, como “populismos”.

As mesmas categorias podem ser reconhecidas em outros campos, como o do Direito e, mais especificamente, o Direito do Trabalho, que ocupa um lugar singular no que se refere ao fenômeno sindical. Há predomínio dos aspectos individuais sobre os coletivos, tributário do pensamento liberal ou, de um “liberalismo social” que lhe concede uma camada progressista, mas que não chega a neutralizar esse selo ideológico de origem.

A exacerbação do conceito de “autonomia” assemelha sua manifestação coletiva à individual, pedra angular do liberalismo jurídico, cuja expressão por antonomásia é a de que “o contrato é lei entre as partes” sem reserva alguma na desigualdade que possa existir entre essas “partes”. Coloca ao Estado somente como salvaguarda dessa máxima, que não dá conta das assimetrias, com clara abstração da política. Explica-se, assim, a assimilação injustificada dirigida à classe patronal como o modo em que se concebe – negativamente – a atuação estatal em chave “libertária” com respeito à organização associativa.

A apelação somente à “vontade” dos trabalhadores é uma absoluta ficção quando se pretende que ali resida, exclusivamente, a razão e condição necessária – como excludente de todo outro fator – do sistema de associativismo válido e legitimante da liberdade sindical. Afirmação que não supõe negar uma vontade autonômica, mas que implica reconhecer uma realidade inevitável ligada aos processos políticos de representação, imprescindíveis para assegurá-la e, inclusive, para orientá-la em favor de obter a potência exigida para sua natural confrontação no conflito social e trabalhista.

A proteção do direito de sindicalização, do reconhecimento das garantias e atribuições que lhes são inerentes (no plano individual e no coletivo), não pode ser concebida prescindindo das particularidades nacionais, das experiências concretas e de decisões próprias dos Estados.

Por outro lado, a evolução e potencialidade da capacidade de ação sindical teve um pilar fundamental no Estado, ainda que paradoxalmente, e isso se converteu em leis em sentido lato (normas de variada natureza de origem estatal), no fomento da negociação coletiva, na criação e funcionamento de órgãos do Estado especialmente dirigidos ao mundo laboral e sindical (como os Ministérios do Trabalho), na integração do sujeito sindical (institucionalmente ou por papel designado à sua dirigência) em diferentes instâncias orgânicas estatais.

Na Argentina, verifica-se uma evolução do associativismo operário alinhado como essa conjugação de um Estado presente e proativo em favor do sindicalismo, sem desvalorizar o reconhecimento da autonomia coletiva, com a irrupção do Peronismo em meados do século XX e o projeto de um Modelo Sindical – ainda vigente – dirigido a fortalecer os sindicatos para efeitos de uma maior concentração da representação. Esse modelo também promove a democratização das relações trabalhistas estimulando e sustentando os acordos coletivos, com impactos positivos visando a capacidade de conflito inexoravelmente ligada aos dois aspectos anteriormente citados.

IV. Novos paradigmas?

Uma etapa tão extensa de institucionalidade democrática não possui precedentes na Argentina, mas não tem sido linear – e menos ainda de contínua progressão – o desenvolvimento da vida sindical e o modo de resolução do conflito sócio-trabalhista. 

Os ciclos com predomínio neoliberal que se registraram antes e depois da chamada “década ganha”, centrada no lapso 2003/2013, mas que é legítimo estender até setembro de 2015 devido à centralidade de políticas favoráveis aos interesses da classe trabalhadora, deram conta de numerosos embates do Movimento Operário e das pretensões de neutralizar todo o empoderamento associativista que responderam a aspirações de equilibrar as relações conflituosas com o Capital, em particular o representado pelos grupos concentrados vinculados ou diretamente expoentes do poder empresarial multinacional.

O notável avanço mundial de diversas formulações do Neoliberalismo se constata claramente em nossa região sul-americana                                              com a insistência recorrente de ajustar sobre a variável trabalhista e exortar reformas precarizadas por vias de regulações legais não-protetoras, assim como a colocação de restrições à negociação coletiva que, com frequência, se traduzem em propostas para limitar os acordos no nível empresarial ou unidades de contratação ainda menores (estabelecimentos, seções) sem articulação virtuosa ou prevalente das convenções por atividade onde estas existam.

É preciso também apontar que se constata uma preocupante fragmentação do amplo espectro sindical, com a existência de três Centrais. A principal delas – a Confederación General del Trabajo (CGT) – denota uma crescente falta de representação e articulação com as associações sindicais (de primeiro e segundo grau) que a ela se agrupam, o que leva a uma ausência de protagonismo, assim como a uma passividade que reduz a  representatividade efetiva.

É nesse contexto que se deve localizar a pregação neoliberal, multiplicada exponencialmente pela imprensa hegemônica, que responde disciplinadamente a esses relatos, dirigida a instaurar “novos” paradigmas para o mundo do trabalho. A única novidade é a criação de denominações eufemísticas utilizadas para disfarçar velhas receitas anti direitos. Esses discursos ganham poder e se expandem a partir de diferentes espaços corporativos, universitários, partidários e internacionais como um papel preponderante de certos organismos multilaterais.

É importante outorgar-lhe transcendências à captação de vontades daqueles que, em definitivo, serão vítimas dessas políticas, como já comprovado em experiências anteriores, valendo-se do desencanto ou frustrações que geraram determinados processos tutelares do trabalho, na maioria ligados a condicionamentos que não puderam – ou não souberam – ser superados, ou a deserções injustificáveis de dirigentes políticos nos quais se havia depositado a confiança popular.

A perda de “identidade de classe” das pessoas que trabalham, a fragmentação coletiva muitas vezes surgida nas disputas de lideranças ou disputas intersindicais (que não priorizam os interesses de seus representados), a queda de emprego tanto em termos de crescente desocupação, quanto de qualidade e aptidão para dotar de condições laborais dignas e salários suficientes, favoreceram uma tendência ao individualismo, à falta de solidariedade elementais, a uma ilusória salvação pessoal ligada a distintas formas de “empreendedorismo”.

É assim que se pregam uma série de proclamações dogmáticas que responsabilizam as tutelas normativas pela destruição de postos de trabalho ou da geração de emprego, enfatizando a incidência negativa de velhas conquistas plasmadas em leis ou convenções coletivas e, particularmente, derivadas da atividade daqueles que as defendem (advogadas/dos trabalhistas e sindicatos).

Ali se explicam estratégias dirigidas a uma individualização das relações de trabalho, querendo incluir o marco regulatório em vinculações diretas operário-patronais através de “contratos” (que potencializa as simetrias entre as partes) ou “liberalidades” dos empregadores absolutamente discricionais; promovendo a deslaboralização das relações de emprego, recorrendo a apelidos ficcionais (associados, colaboradores, empreendedores, entregadores autônomos) para referir-se às pessoas que trabalham sujeitas a uma clara dependência. Também aí reside a implementação de figuras contratuais não-trabalhistas e de terceirizações que favoreçam aquelas outras alternativas; instando à dessindicalização, tanto pelas limitações que resultam em uma direta consequência das situações precedentemente descritas, quanto pelas campanhas de estigmatização das organizações gremiais e suas diligências; tendendo à criminalização dos protestos, reivindicações e ações sindicais.

V. Reflexões finais

O sindicato é o vetor pelo qual se impulsiona a democratização das relações trabalhistas: na gestão da atividade, com impacto nas capacidades de organização e direção empresarial; na participação na tomada de decisões e nos lucros; na criação de instâncias para a defesa de seus representados, limitando os poderes disciplinares do empregador e, mais ainda, os propósitos disciplinantes da força trabalhista.

Focando no dilema que dá título a este artigo em sua verdadeira dimensão e natureza, sem subtrair entidade à perspectiva jurídica, não se trata, na realidade, de uma temática abordável exclusivamente a partir do Direito, em base a uma hermenêutica positivista e desprovida de uma visão mais abrangente, mas sim de uma questão em certa medida “metajurídica” que deve ser apreciada, em princípio, como tal.

A decisão sobre o modelo de sindicalização como inerente à liberdade sindical, para além das respostas que podemos encontrar a partir do campo do Direito. Constitui uma decisão de mérito, de oportunidade e conveniência visando o interesse geral, o bem-estar comum e a ordem pública, que não está separada ou alheia ao Estado e não diminui a autonomia coletiva.

Portanto, deve ser reconhecida como uma decisão de natureza política, inerente ao papel próprio do movimento operário em seu conjunto e sobre o qual é necessário, também, alertar a relevância que adquirem os órgãos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) no marco de suas respectivas competências.

A autonomia coletiva muitas vezes é compreendida a partir de uma concepção ingênua, que leva a atribuir a forma de organização sindical à vontade exclusiva dos trabalhadores, o que é frequentemente replicado a partir da “academia” ou de uma teorização idílica carregada de ideologias que não respondem às nossas realidades e à natureza multidimensional desse fenômeno laboral coletivo.

Os alegados “novos paradigmas”, impregnados de invocações “libertárias”, uma vez analisados, revelam uma clara intenção de desconstruir o Direito do Trabalho, começando pelos princípios que o sustentam e uma oposição aberta aos direitos inerentes à liberdade sindical (associação, negociação e greve em sentido amplo).

Na Argentina, existem numerosos precedentes de feroz resistência sindical a este tipo de projetos, mediações ou confrontos sindicais e fragmentações de liderança, superados nestas emergências com sólida unidade na ação.

Esta tradição de luta e a sua histórica filiação política maioritária desde 1945 são razões suficientes para que o sindicalismo seja combatido pelos setores que pressionam por uma conversão definitiva do país em chave neoliberal. Para tal, propõem abertamente a proibição de todas as medidas de força no local de trabalho, bem como o protesto no domínio social.     

A liberdade que hoje realmente está em risco é justamente aquela que garante outras liberdades sociais e direitos trabalhistas. É fundamental estar alerta, decodificar a tempo as propostas que o ameaçam, distanciar-nos de categorias de análise eurocêntricas que carregam opacidades que não são propícias às que o positivismo jurídico liberal já oferece.

Em suma, defender a todo custo a liberdade sindical, especialmente aquela que se expressa na esfera coletiva e na esfera externa de atuação das organizações trabalhistas, nas ações sindicais reivindicativas e propositivas; sem deixar de promover uma coordenação virtuosa e necessária com o Estado, onde reside o poder indispensável para enfrentar o Capital na luta distributiva e no desenho de um modelo de progresso com justiça social.

 

Álvaro D. Ruiz é advogado especializado em Direito do Trabalho e assessor sindical. Professor de Direito Sindical e Relações Coletivas de Trabalho da Faculdade de Ciencias Sociais da Universidad de Buenos Aires e Diretor do Mestrado em Negociações Coletivas de Trabalho da Universidade do Museo Social Argentino, dentre outras atividades docentes. Foi Subsecretario de Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social da Argentina de 2007 a 2015. Colunista do portal digital de notícias argentino El Destape.

Fonte: Democracia e Mundo do Trabalho