A crise provocada pelo coronavírus já abala fortemente a estrutura socioeconômica mundial. Diferentemente da crise de 2008, que se iniciou no mercado de crédito imobiliário dos EUA e logo se espalhou para o setor financeiro para, só então, atingir a economia dita “real”, a atual se origina diretamente da paralisação das esferas produtivas e de consumo.
Considerando o consumismo desenfreado (baseado na redução do tempo de rotatividade do consumo) que rege a economia atual, o estrondoso impacto será sentido rapidamente.
Segundo o aclamado David Harvey, “grande parte do modelo mais avançado no consumismo capitalista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. (…) As economias capitalistas contemporâneas são 70% ou até 80% motivadas pelo consumismo. Nos últimos quarenta anos, a confiança e o sentimento do consumidor tornaram-se a chave para a mobilização da demanda efetiva e o capital tornou-se cada vez mais orientado pela demanda e pelas necessidades. (…) O COVID-19 não está sustentando uma flutuação violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma de consumismo dominante nos países mais ricos. A forma espiral de acumulação infinita de capital está entrando em colapso interior, de uma parte do mundo para outra”.
A conta da crise está chegando e já se inicia um processo de intensificação da luta de classes mundo afora. Essa batalha não ficará apenas no front atual da discussão, que diz respeito à manutenção dos postos de trabalho em tempo de isolamento (se é possível ou não demitir funcionários, se é possível ou não promover despejos e cortar serviços públicos essenciais como água e luz). A discussão sobre o custeio da crise logo virá (daonde sairá o dinheiro). Cabe aos trabalhadores se organizarem politicamente para transferir essa conta, na maior medida possível e em ambas as frentes da luta, para os grandes bolsões de concentração de riqueza.
E em concentrar riqueza, nós brasileiros somos absolutamente prósperos. Segundo relatório do Pnud, o Brasil é o 2º país do mundo com maior concentração de rendas, atrás somente do Catar. Apenas para se ter uma ideia, “a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país, e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda”. Dá para ter uma ideia da enormidade dos bolsões de riqueza quando consideramos que o Brasil é a 9ª maior economia do mundo. O mesmo relatório nos aponta como o 7º mais desigual do mundo.
Algumas coisas então são certas: a) Não falta dinheiro em termos quantitativos; b) A estrutura econômica brasileira foi historicamente constituída a partir de mecanismos de centralização de riqueza que se perpetuam até hoje; c) Estamos falhando clamorosamente na concretização daquele objetivo fundamental previsto lá no art. 3º, III da Constituição de 1988, esquecido por quase todos os juristas e que até hoje não passa de tinta no papel: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (este último, repetido no art. 170, VII). Passados mais de 30 anos da proclamação da Constituição, esses objetivos se perderam no horizonte e estão tão distantes que beiram a utopia. Estão guardados no armário, na última gaveta, empoeirados, à espera de que o povo mais pobre os abracem como bandeira de luta político-jurídica.
Parece uma ótima oportunidade de desempoeirá-los. Cabe à classe trabalhadora, verdadeira força motriz da economia, se organizar para evitar que a corda estoure novamente no lado mais fraco, como já é de costume. A luta de classes se intensificará fatalmente.
Que o cenário internacional sirva novamente de laboratório. Comecemos com a união dos trabalhadores noruegueses, que já contam com um sistema de previdência social avançado e obtiveram considerável conquista a partir da mobilização popular.
Em 10 de março, o atual governo norueguês propôs um pacote de medidas cuja centralidade era o apoio às empresas que sofriam com a quarentena compulsória. As medidas barateariam os custos empresariais com uma licença fornecida da seguinte forma: pagamento de 15 dias integrais, após os quais a previdência social cobre 62,4%. Esse era o status anterior. As propostas do governo cortariam o período de pagamento integral de 15 dias para apenas 2. Uma drástica redução que baratearia os custos empresariais e transferiria a conta para o trabalhador.
Após fortíssima mobilização dos sindicatos e dos partidos de oposição, os trabalhadores conseguiram não apenas reverter a proposta como também aprovar outro pacote que expandia os direitos trabalhistas. Agora, os trabalhadores licenciados receberão pagamento integral por 20 dias (antes, eram 15!). Destes, os empregadores cobrirão somente os dois primeiros dias e resto será pago pelo Estado.
O novo pacote foi além: os “dias de cuidado” (período em que o trabalhador pode ficar em casa, recebendo integralmente, para cuidado de familiares), passaram de 10 para 20 dias. Autônomos e outros trabalhadores informais receberão uma espécie de “auxílio social” na monta de 80% da média do que recebiam durante os três últimos anos, limitados a € 52.000. Um sensível avanço comparado à proposta original que deixava os trabalhadores à deriva.
As medidas de proteção ao trabalhador poderiam avançar muito mais. Mas o importante é destacar que a mobilização dos trabalhadores reverteu a medida de cortes originalmente orquestrada.
Passemos para a Itália. Lá, o governo lançou um robusto programa de auxílio às empresas composto por subsídios, suspensão do pagamento de tributos e concessão de linhas especiais de crédito. A isso se somou uma desastrosa medida de relaxamento do isolamento social com o objetivo de “reaquecer a economia e incentivar o turismo” (algo semelhante ao que ensaiamos fazer por aqui). Apostava então o governo na manutenção dos empregos por via indireta: ajudando as empresas, estas manteriam os postos de trabalho.
Sucede que as empresas beneficiadas não raro têm obrigado seus funcionários a trabalhar mesmo assim. Em resposta, operários de indústrias não essenciais têm se recusado botar a mão na massa, iniciando uma greve ligeiramente diferente da observada até hoje. Temendo por suas saúdes, operários da FCA (fusão da Fiat com a Chrysler) anunciaram que se recusavam a ir trabalhar. Há relatos de greves nas metalúrgicas em Termi, nos estaleiros de Veneza e no Porto de Genova (neste último, os trabalhadores reclamaram ainda que nada havia sido feito para limpar seus equipamentos de proteção). No grosso, a classe pretende o pagamento dos salários pelo período de quarentena. A luta ainda está em curso, mas a mobilização é tamanha que a vitória dos trabalhadores é provável.
Movimentos como esses seguem mundo afora. Um atrás do outro, os governos anunciaram seus programas com medidas inicialmente modestas e a mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras e da opinião pública garantiu avanços mais concretos.
A Inglaterra, inicialmente, direcionou seu programa para auxílio às empresas. Tal como a Itália, acreditava que, por via indireta, conseguiria manter o emprego dos trabalhadores e trabalhadoras.
O pacote inglês é permeado de robustas isenções fiscais, linhas de crédito e subsídios aos empregadores e, no início, previa poucos auxílios diretos aos empregados. Após mobilização popular, o governo propôs o pagamento de 80% dos salários dos trabalhadores que estejam em licença (incluindo os trabalhadores e trabalhadoras informais), com o limite de 2.500 libras. Agora sim temos uma medida concreta de benefício direto à classe.
O grosso dos pacotes econômicos propostos até aqui canaliza os esforços do governo nas empresas. Partem da equivocada premissa de que são elas que ocupam o papel central na economia. Eis a atual quadra neoliberal da qual precisamos urgentemente sair.
A força motriz da economia é a classe trabalhadora. Se ainda há dúvida, basta olhar para fora da janela: a economia colapsa se os trabalhadores e trabalhadoras de carne e osso ficam em casa. Portanto, qualquer pacote econômico que não coloque a classe trabalhadora como beneficiária central se reveste de patente injustiça.
Canalizando os esforços estatais nas empresas, os governos apostam que, indiretamente, os empregados serão beneficiados. Essa arriscada aposta de manutenção dos empregos por via transversa é altamente questionável e o exemplo da Itália o prova. Não há nenhuma garantia: a) de que as empresas não promoverão demissões em massa mesmo assim; b) de que de fato paralisarão suas atividades para resguardar a saúde de seus funcionários.
O ponto a ser destacado é que só a mobilização da classe trabalhadora colocará seus interesses diretos no centro dos planos econômicos que virão.
No Brasil, o atual governo editou Medida Provisória permitindo a despótica suspensão dos contratos de trabalho pelo prazo de 4 meses. Neste período, ficaria suspenso também o pagamento de salário. Viveriam de que? Somente depois da óbvia “repercussão negativa” é que o governo voltou atrás. Já há também algum movimento no congresso para cortar o salário de servidores públicos. E pior: ensaia-se o retorno das atividades empresariais, pondo em risco a própria saúde dos trabalhadores e trabalhadoras numa espécie de isolamento invertido (dirigido somente aos grupos de risco) fadado ao fracasso.
De outro lado, partidos de oposição propuseram um pacote de renda emergencial no valor de 1 salário mínimo. Se aprovado, um alento em meio ao caos que se avizinha.
A mobilização da classe trabalhadora é absolutamente urgente e deve se direcionar para duas frentes principais: 1) Garantir benefícios diretos. Por exemplo: licença remunerada durante o tempo de isolamento, garantia de manutenção do emprego, suspensão das cobranças de aluguéis e tarifas básicas de água, esgoto, luz e outras, impedir a realização de despejos, garantia de renda básica inclusive às pessoas que estão no mercado informal (não a patética esmola de R$ 200,00 atualmente veiculada), medidas assistenciais às pessoas em situação de rua (incluindo pagamento de renda e garantia de abrigos), dentre outras; 2) Direcionar o pagamento dessa conta para os bolsões de riqueza historicamente privilegiados.
E aqui entra o segundo front da luta. Apenas para se ter uma ideia, recente estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal em parceria com professores da UNICAMP previu arrecadação de 272 bilhões de reais com medidas de absolutamente concretas de taxação dos super-ricos.
Vejamos a proposta do estudo: a) criação de um Fundo de Emergência composto por um imposto sobre grandes fortunas (cuja alíquota é progressiva e varia em razão da base de cálculo); b) criação de uma contribuição social residual por eles denominada “Contribuição Social Sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas”. A CSPF teria incidência imediata sobre rendimentos de qualquer natureza que ultrapassasse R$ 80 mil reais por mês dos atuais 194.268 contribuintes (0,7% do total), resultando numa arrecadação de 72 milhões por ano; c) Direcionamento de 50% da arrecadação da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre os setores financeiro e extrativista mineral, d) Criação alíquota adicional extraordinária e temporária de 30% da CSLL apenas para bancos e instituições financeiras e a majoração de alíquota da CSLL para mineradoras e setores com alta lucratividade e baixo quantidade de empregos; e) Majoração robusta do teto do ITCMD.
A proposta poderia ser ainda mais ousada. Por que não a instituição de empréstimos compulsórios (art. 148, I, CF\88) tendo como base de cálculo as grandes rendas e os grandes patrimônios, de modo a garantir o ingresso imediato de receitas no fundo de emergência? Ou quem sabe a instituição do imposto residual previsto no art. 154, I da Constituição? Por que não avançamos na direção de dar a conta para os círculos de riqueza concentrada?
Já sabemos a resposta. Quem comanda de fato as economias capitalistas são aqueles que ocupam o andar de cima. A classe burguesa, em bom português. Ela capturou, há muito tempo, a força política estatal para garantir seus interesses. Exerce dominação mesmo aparentemente distante do poder político (um olhar mais atento verificará, contudo, a forte proximidade).
Marx já havia percebido esse movimento sorrateiro de exercer dominação por trás das cortinas. No seu aclamado 18 de Brumário de Luis Bonaparte, captura a essência do pensamento: “a burguesia confessa que o seu próprio interesse demanda que ela seja afastada do perigo de governar a si própria. (…) que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se a sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes”.
Não há qualquer possibilidade de democracia real com tamanha desigualdade econômica. O desequilíbrio que ela causa no campo político é tão forte que não há qualquer possibilidade de a maioria do povo realmente se autogerir. E não é a “autogestão” um dos pilares centrais do conceito de democracia?
A lição é antiga. Segundo Georges Lefebvre, “Rosseau já observara, bem antes de 1789, que a democracia não é compatível com a excessiva desigualdade de riquezas”.
Somente a mobilização popular poderá tirar do armário aquele velho objetivo constitucional previsto no art. 3º, III (reduzir as desigualdades sociais) e transferir a conta da crise para a elite econômica. Só os trabalhadores e trabalhadoras podem salvar a si próprios. Essa é a única medida radicalmente democrática a ser tomada, pois é a única que reconhece a organicidade da desigualdade social e a coloca como vetor central das ações. Eis a luta dos trabalhadores.